Por que sair da cidade de São Paulo depois de 20 anos morando na capital?
- Vivian Vianna
- há 5 dias
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Atualizado: há 4 dias

Às 5h45 da manhã acordo. O sono não é interrompido pelo despertador, mas pelas texturas do silêncio da Serra da Mantiqueira, que despertam aos poucos os sentidos. É um silêncio vivo, cheio de pequenos ruídos que se misturam com delicadeza. O vento passando por entre as árvores da mata que rodeia a casa traz também o aroma fresco da manhã no mato. Depois, vêm os pássaros que chegam para se alimentar na beira do laguinho e nos pés de fruta, animando a manhã com ruídos e cantos que nada se assemelham ao som bruto da construção do Metrô em frente ao nosso antigo apartamento na Consolação. Se faz sol, as cigarras estridentes se unem à orquestra. Quando abro as janelas, o ar frio entra sem pedir licença, carregando a promessa de um dia tranquilo.
Sentar na varanda para tomar café, observando a névoa se dissipar enquanto sinto os primeiros raios de sol na pele e vejo o reflexo deles na água do lago e nas gotas de orvalho das folhas, me faz pensar que todas as manhãs deveriam começar com calma e contemplação. O tempo, quando desacelera, revela movimentos que fogem à nossa atenção, quando aprendemos que a vida sempre apressada da cidade é a única possível.
São Paulo, por anos, me ofereceu o que era para mim a vida dos sonhos: cheia de movimento, estímulos, novidades, com a sensação de estar onde as coisas acontecem e acesso a infinitas possibilidades. A cidade foi, para mim, cenário e combustível, e durante duas décadas me vi imersa, com paixão, nessa coreografia acelerada.
Então, o que mudou?
Há questionamentos que não se respondem de súbito. Primeiro se instalam, discretos, como quem puxa uma cadeira para ficar mais tempo do que o previsto. A decisão de deixar São Paulo, depois de duas décadas vivendo no coração da cidade, foi assim: começou com mudanças pequenas no modo de olhar o mundo, que levou a observações que se transformaram em pequenos incômodos. A partir daí, vieram alterações no modo de vida e na rotina, algumas imperceptíveis, outras que chamaram mais a atenção, mas que foram se acumulando, até que a necessidade de silêncio e o pedido de respiro deixaram de ser desejos inalcançáveis e se transformaram em planos.
Não houve um único momento decisivo, uma virada de chave ou um plot twist. Na verdade, foi o contrário: uma sucessão de percepções miúdas, como rachaduras que aparecem no azulejo e revelam, aos poucos, que o rejunte já não sustenta mais a estrutura. A cidade, que durante tanto tempo foi palco de descobertas, projetos, aventuras e conquistas, começou a mudar numa direção que não nos convidava mais a ficar. A ânsia de aproveitar e participar se transformou em uma espécie de descompasso silencioso entre quem estávamos nos tornando e as mudanças pelas quais São Paulo vem passando.
A sensação passou a ser de que tudo exigia mais energia do que valia. Como se cada pequeno movimento cotidiano precisasse ser justificado com uma dose crescente de vigor que já não nos era devolvida em troca. São Paulo é uma promessa de oportunidades ilimitadas, mas quando a equação entre o que ela oferece e o que cobra deixa de ser equilibrada, a conta passa a pesar de um jeito difícil de sustentar.
O desejo por uma vida com ritmo natural
Começamos a desejar um tipo de vida que não cabia mais na moldura metropolitana: uma vida com tempo, e não contra ele, com dias que seguem o movimento do sol. Com um ritmo que respeita o corpo e proporciona a ele momentos necessários de sentir e reagir: ao vento, ao cheiro de terra, às mudanças diárias nas plantas e na paisagem, à presença dos animais, demonstrando vida, e não apenas às notificações que piscam na tela. Queríamos que bem-estar deixasse de ser algo almejado para finais de semana e se tornasse cotidiano, incorporado nas coisas mais simples: acordar sem som de britadeiras, respirar o ar sem fumaça, caminhar na rua sem medo.
Desde o primeiro momento, a ideia foi escolher não apenas uma cidade do interior, mas uma região rural, com uma casa no meio da natureza, de preferência cercada por mata. Pesquisamos por meses, conversamos com amigos que já tinham feito esse movimento, assistimos muitos vídeos de gente que saiu da cidade para voltar a viver no campo. Elencamos algumas opções de locais e fomos conhecer.
Como chegamos à Serra da Mantiqueira
A Serra Mantiqueira surgiu primeiro como uma possibilidade e, quando viemos conhecer São Francisco Xavier, foi amor à primeira vista. A estrada que leva até o distrito, margeada por trechos de mata que parecem criar portais para nos transportar a outro universo, me traz algo de mágico toda vez que passo por ela (e espero que isso nunca se perca). Ainda hoje, depois de dois meses e meio, me encanto todos os dias com a luz do sol que desenha o verde das montanhas contra o céu azul, ou com a névoa que se forma no topo dos morros em dias mais frios, criando uma aura de mistério. Me deslumbro com as aves multicoloridas, cada dia uma diferente, que vêm nos visitar no quintal. Fico fascinada pelas flores que surgem inesperadamente no jardim a cada manhã. Me sinto abraçada pelo cheiro de mato misturado com o cheiro de lenha que sai dos fogões e lareiras. Mas o que encontramos aqui não foi apenas beleza. Encontramos, sobretudo, um ambiente e um ritmo mais próximo do que se tornou importante pra nós.
Apesar de tudo isso, a vida aqui não é um cartão-postal permanente. Moramos em uma casa com toda a estrutura que precisamos, mas é rodeada por mata e vegetação, e isso exige um tipo de trabalho e manutenção que não fazia parte das nossas preocupações. Lidar com todas as novidades tem sido um aprendizado diário e isso é justamente o que mais me empolga. Aqui, sentimos na pele - com o sol, com a chuva, com o vento, com as montanhas e os animais - o quanto a natureza é poderosa e não negocia com a vontade humana. Ter a oportunidade de presenciar isso todos os dias nos ensina a ter humildade e esfrega na nossa cara o quão pequenos e insignificantes nós, como humanos, somos.
Deixar de São Paulo após vinte anos fez parte de um processo de busca não apenas pelo bem-estar, mas pelo bem-viver, que nos levou à percepção de que existem outros modos de estar no mundo, com diferentes dinâmicas, relações e ritmos. Talvez a grande lição de sair da cidade e escolher outros caminhos seja perceber que o que chamamos de futuro, afinal, é só o presente vivido com atenção.
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